Imagem: Tempo e Movimento

Este artigo almeja discutir as abordagens utilizadas pelo cinema e pela fotografia para representar o tempo e o movimento, demonstrando como o dispositivo e a linguagem própria de cada aparato influenciam na escolha das estratégias narrativas. Também são apresentados os conceitos de convergência midiática, uma vez que a arte contemporânea tem derrubado as barrerias impostas pelos meios individualmente, incentivando hibridismos e diálogos, resultando em imagens-fluxo.


INTRODUÇÃO

O início do cinema está intrinsecamente relacionado com a história da fotografia, cujos experimentalismos permitiram o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica. Essa linguagem foi consolidada e utilizada como fórmula pela indústria do entretenimento, porém o cinema arte nunca deixou de questionar as possibilidades narrativas e os limites do meio. Essa busca incessante levou o cinema a atravessar as fronteiras entre os diferentes tipos de mídia, flertando com a fotografia, com o vídeo, literatura e artes plásticas.

Esse movimento também se faz notar nas demais artes, em especial a fotografia e o vídeo, em função dos dispositivos terem evoluído tecnologicamente, tornando as fronteiras ainda mais indistintas e facilitando os experimentalismos. A convergência, a constante mobilidade de conceitos, a apropriação e ressignificação de aspectos da linguagem torna cada vez mais importante análises multidisciplinares, que permitam uma compreensão mais global e integradora.

Uma das maneiras de se alcançar esse objetivo é comparar os diferentes dispositivos de produção e difusão buscando as semelhanças e contrastes, opondo continuidade à fragmentação, movimento à pausa, mecânica (aparato) à linguagem (narrativa). Outro é analisar as solução encontradas por cada dispositivo para resolver as questões sobre tempo e movimento e, a partir dessas respostas gerar interferências na captura das imagens, criando novas problemáticas, alterando estéticas e permeando fronteiras.

Dessa forma, podemos enquadrar a discussão dentro da filosofia de Vilém Flusser (1985) onde a pesquisa busca descobrir novas potencialidades através da manipulação do aparelho, de formas que originalmente ele não foi programado à operar, ao mesmo tempo em que se utiliza do conceito de que “os programas dos aparelhos são compostos de símbolos permutáveis” permitindo colocar em contraponto os aparelhos fotográfico e cinematográfico.


SOBRE O TEMPO

A tendência, ao se pensar em fotografia, é considerá-la um fragmento de tempo, retirado do fluxo natural pelo obturador da máquina e congelado pela eternidade em um suporte qualquer. Remete à semiótica, com seu signo indicial do “isto existiu” defendida por Barthes e cuja filosofia do instante decisivo de Henri Cartier-Bresson busca ampliar, englobando todos os elementos do enquadramento de modo a conceder um poder de síntese à narrativa.

Vale ressaltar que o procedimento adotado pelo cinema se originou justamente desses fragmentos de tempo, esvaziados de significado quando vistos isoladamente e revestidos de ação quando postos em movimento pela cadência do projetor. O cinema utiliza o próprio instantâneo fotográfico para negá-lo, conforme apontado por ELIAS (2007 – p.11):  “Sabemos que o cinema é, na verdade, uma série de instantâneos separados por intervalos, mas aos sentidos ele se apresenta de forma lisa e fluida, como a própria natureza do movimento.”

Por um lado a fotografia busca, através de ensaios, múltiplas exposições, panorâmicas e etc., se aproximar do potencial narrativo do cinema, representando diversos instantes em uma única imagem ou numa seqüência descontínua. Por outro, o cinema busca, através de grandes pausas, quebrar sua continuidade mostrando cenas que se aproximam da contemplação de uma fotografia. Conforme exposto por Bellour (1997, p.85) “produz o efeito de desprender (ainda que minimamente) o espectador da imagem, mesmo que seja apenas pelo complemento de fascínio que ela exerce.”

Apesar dessa aproximação entre fotografia e cinema, para Aumont (2004,100):

“O cinema, por construção, é tudo exceto uma arte do instantâneo: por mais breve e imóvel que seja um plano, ele jamais será a condensação de um momento único, mas sempre a impressão de uma certa duração. Se pude falar há pouco de formas do tempo na pintura, foi por metáfora, já que o tempo, acabamos de ver, só pode aí ser representado, e sob uma certa forma. O cinema, o plano, a vista cinematográfica são, em compensação, tempo em estado puro.”

Nota-se que o tempo na fotografia, contrariando o pensamento clássico, deixa de ser pontual e instantâneo para se tornar simultaneamente, dentro da arte contemporânea, presente, passado e futuro em função dos procedimentos de montagem no interior dos planos e entre os planos das imagens em movimento (Fatorelli – XXX , 174).  Uma vez que os teóricos da fotografia e do cinema vão se aprofundando na questão temporal, invariavelmente trazem à tona também a questão espacial, o outro lado da moeda na representação imagética da realidade. “A imagem passa a demandar um observador potencialmente mais ativo e culturalmente situado, capaz de decodificar os seus signos e de apreender criticamente o contexto social, institucional e cultural envolvente.”


SOBRE O MOVIMENTO

A fotografia é estática por natureza, por isso recorre a uma linguagem própria para denotar o movimento. Utiliza de rastros luminosos, borrões e outros artifícios semelhantes para sugerir a existência de algo além do que foi capturado, de forma fragmentada. Apesar disso, ainda resta a dúvida quanto à origem desse indício: o movimento partiu da câmera ou do objeto fotografado?

No cinema, essa necessidade não existe. Imagens estáticas nítidas e detalhadas são exibidas de forma cadenciada a fim de recriar o movimento, sendo uma ilusão extremamente convincente para o observador, que acredita ver a seqüência completa e contínua, sem lacunas. A imagem-movimento de Deleuze.

Fotografia e cinema aproximam-se cada vez mais. A fotografia tende a se mexer mais (procurando a montagem, o texto, a série, a sequência, o livro, um movimento particular conquistado em sua imobilidade de princípio). O cinema, por sua vez, perseguido pelo desejo de congelar-se, livrar-se do excesso de movimento e continuidade, percorre o caminho oposto, uma busca pela pausa, um tempo de absorção do sentimento e da elaboração do pensamento para então prosseguir (BELLOUR, 1997)

Em essência, ambos se baseiam em truques para transmitir a sensação de movimento. Algo percebido e, como tal, sujeito a alterações. Tanto o espaço como o tempo podem ser distorcidos, acelerados e condensados, desacelerados e distendidos. Conforme COELHO (2013):

“E movimento, por sua vez, deixa de vigorar no campo da física dos corpos para atuar no campo da percepção visual de signos capazes de (re)construí-lo na mente. O movimento deixa de ser experimentado diretamente para ser acionado mentalmente por meio de uma imagem. Este acionamento por imagem permite existir, em potencial, tantas possibilidades expressivas para ideias de movimento quanto forem as lembranças relacionadas a movimento já registradas pelos sentidos.”


ESTUDO DE CASO: Super Panorâmica em câmera de fenda

Seguindo o exemplo das modificações realizados no aparato fotográfico denominado “câmera de fenda”, conforme demonstrado em COELHO (2013), tentou-se reproduzir a experiência em uma câmera normal de cortina totalmente mecânica. Através da liberação do mecanismo para rebobinar o filme e a utilização do modo bulb, foi possível obter resultados semelhantes: os elementos estáticos se repetiram, a alteração de velocidade na movimentação do filme imprimiu tons diferenciados (em função da variação na exposição) e registrou com maior definição os objetos que se movimentavam em velocidade semelhante à do filme.

A grande diferença da câmera utilizada para uma “câmera de fenda” verdadeira é o tamanho da abertura por onde entra a luz que irá sensibilizar o filme, sendo bem maior que a segunda, ocasionando um efeito maior de múltipla exposição, marcando mais o movimento e distorcendo menos os objetos capturados. A modificação no modo manual permitiu que a K1000 reproduzisse uma condição indispensável para a duplicação do efeito de fenda: a cortina se encontra imóvel e o filme, em movimento.

23 de maio

A captura de imagens foi realizada na avenida 23 de maio, onde foi possível ter diversos veículos em diferentes velocidades, permitindo todo o tipo de registro visual, desde imagens nítidas a rastros sem forma, transbordando movimento e cor. Os cortes foram feitos para possibilitar a digitalização do filme, porém a exposição foi realizada sem intervalo, utilizando todas as 36 poses do negativo colorido KODAK Pro Image 100.

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Audiovisual

As experiências individuais obtidas pelos alunos do curso de pós-graduação em fotografia como arte contemporânea do SENAC foram reunidas no vídeo abaixo, editado por Pamella D’Ornellas e apresentado como trabalho de conclusão da disciplina “Imagem e Movimento” do professor Kenji Ota.


CONCLUSÃO

Não apenas a imagem, estática ou em movimento, é um construto do sensório. O tempo encontra-se também relativizado pelas nossas percepções e a arte busca retratar isso, subvertendo dispositivos e programas. Da mesma forma que as máquinas de imagens de Dubois evidenciam uma evolução dos aparatos em busca de uma inovação estética, sem fundamentar-se na ideologia e retórica da novidade, as intervenções realizadas em máquinas analógicas buscam ampliar campos bem demarcados em que atualmente beiram os processos históricos e artesanais.

Com esse projeto, o filme exposto não apresenta separações, a ausência de pessoas indica a impessoalidade, apenas seus aparatos aparecem, em eterno movimento em um fluxo quase liquefeito, nestes tempos de modernidade líquida. As cores saturadas, as formas que apenas sugerem a paisagem da qual se originaram, a manipulação do dispositivo visam conseguir essa estética que, mais do que um efeito, é representação do estado de espírito da cidade e seus habitantes.


REFERÊNCIAS

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993.

BELLOUR, Raymond. Entre-imagens: foto, cinema, vídeo. Campinas: Papirus, 1997.

BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2013.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.

COELHO, Luis Moraes. Fotografia e(m) movimento: poéticas da locomoção na fixidez da imagem. Belo Horizonte, 2013. 109p. Dissertação de Doutorado – Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Minas Gerais. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/JSSS-97NQGL/tese_luis_moraes_coelho.pdf?sequence=2>. Acesso em: 15/12/2015.

ELIAS, Érico Monteiro. Fotografia e Cinema: delineando fronteiras entre dispositivos. XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Santos, 2007. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R1436-1.pdf>. Acesso em: 15/12/2015.

Um comentário sobre “Imagem: Tempo e Movimento

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